Relógio

Ele fazia aquele bang-bang a cada meia hora. Pregado na parede um dos corredores da grande casa, o relógio de dona Nenê era daqueles de corda, em formato de cuco. Havia sido um presente de casamento, há mais de 20 anos. Nenê era apenas uma menina de 16 anos recém feitos quando o colocaram em seu colo.

  • Olhe, Nenê, o que o velho Alceu lhe deu. - Alceu era o relojoeiro do povoado e tinha uma loja de lindos relógios. Eram tão encantadores que era um custo escolher um único modelo sem ficar em dúvida. Ela olhou curiosamente para a peça, tocando na madeira escura esculpida a mão. Reparou nos ponteiros que brilhavam como ouro, no pêndulo que tinha um formato mágico de uma seta dourada. O vidro era modestamente decorado com desenhos singelos, delineando as bordas de forma delicada.
  • Céus, esse deve ser o santo graal dos relógios - pensou Nenê com os olhos vidrados.

Nos primeiros meses, o marido quase quebrou o relógio com um punhado de pupunhas. O pobre via-se perseguido pelas badaladas da geringonça até nas horas mais estranhas. Certa vez, o coronel Constâncio comeu tanto açaí com farinha que à hora de dormir estava como flor, plantado no vaso que, naquela época, era no quintal. Cagou tanto que ficou assado e, na tentativa de chamar dona Nenê para lhe trazer água fria que lhe refrescasse as partes, viu-se gritando para que a voz sobressaísse às do relógio, que batia 11 horas.  
Nem mesmo os protestos indignados do Coronel desfizeram o encantamento que Nenê tinha pelo relógio.

  • Ele fica. - disse resoluta. - Esse relógio vai contar a nossa história, Ciço. - profetizou enquanto mudava a pobre máquina de lugar para que incomodasse o mínimo possível. Foi assim que foi parar na segunda sala de estar que dava para o poente, onde as roseiras suportavam bravamente o sol inclemente das tardes mais quentes e úmidas de Charque Seco.

Mais de 20 anos depois, Quiterinha encontrou o relógio sufocando de calor em um dos quartos antigos da velha casa. Apesar de antiquado, ainda era altivo e bastou dar corda novamente para que ele voltasse a funcionar como nos velhos tempos.

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