Ô, lá em casa


Dia desses recebi um vídeo de comédia. Era de um cara meio mal ajambrado, suado e mal vestido. Ele está assobiando e dizendo "Ô, lá em casa, diliça, tesão!'. Uma mulher indignada lança impropérios ao cidadão. É quando o cara revela que estava se dirigindo ao ar condicionado. O amigo que me enviou achou hilário. Eu ri para ser educada e então parei para pensar por quê. 

Se você é uma garota é muito provável que já tenha passado por isso algumas vezes na sua vida.  A fórmula é simples:  não estar na companhia de um homem. Pronto. É buzina na rua, assobio (que não é o saudoso fiu-fiu), é aquela chupadinha que os caras fazem com os lábios ao mesmo tempo em que assobiam bizarramente. E isso é o de menos. Tem gente que diz coisa muito pior, tem gente que pára na sua frente pra você passar e a pessoa poder olhar a sua bunda. Como se eles tivessem o direito de nos despir com os olhos.  De nos diminuir ao nível de uma carcaça feita de carne e ossos pendurada em um açougue. 

Desde muito nova lido com esse tipo de machismo. É difícil, ao menos para mim, esquecer a maioria. Quando eu tinha quatorze anos, estava atravessando a rua e um homem atravessava em minha direção. Quando nos cruzamos ele me olhou de cima abaixo e disse "Que b... gostosa".  Na época eu não sabia bem o que sentir, mas asseguro que não foi bom. Com o passar dos anos supus que dar atenção a essas "cantadas" era bem pior e passei a baixar os olhos, fingir que não escuto. 

Mas isso não faz com que eu me sinta melhor. Todas as vezes em que ouço uma buzinada quando atravesso a rua, que vejo que um cara está me esperando passar pra olhar o meu bumbum, eu me sinto acuada. Me sinto vítima. Me sinto diminuída e humilhada. Tenho 36 anos, duas graduações e uma pós-graduação. Arraso no inglês e me viro no francês. Se tem algo que nunca fui é uma vítima, a não ser em episódios como esses. Lá fora, há tantas outras mulheres muito mais inteligentes e brilhantes do que eu e elas passam, diariamente, pela mesma violência. E baixam os olhos, acuadas por um machismo tão engendrado em nós mesmos, homens e mulheres, que achamos engraçado vídeos como os do cara do ar condicionado. 

A vida é assim. O mundo é machista. Mas podemos mudar. Podemos melhorar. Podemos criar nossos filhos e filhas com ideais de respeito e dignidade. Podemos sensibilizar nossos amigos, amigas, namorados e namoradas a ponto de lhes mostrar o que é violência e humilhação quando uma mulher não pode sequer colocar uma saia e sair sozinha na rua. 

Podemos ensinar nossos filhos, irmãos, maridos e pais que lavar a louça não é serviço de mulher. Mostrar-lhes que a simples ação de tirar o próprio prato da mesa (veja que nem estamos falando de tirar a mesa toda) não é tarefa da esposa, da mãe ou  da filha. É respeito, é igualdade e, acima de tudo, é educação. Podemos mostrar-lhes que igualdade de gênero não é parar de abrir portas de carros para elas saírem ou dividir as contas com as mulheres. 

Igualdade é não presumir que a esposa, na casa da sogra, por exemplo, tenha que ajudar na cozinha após um almoço, enquanto os homens se levantam pra fumar um cigarro ou fazer qualquer outra coisa. Não é igualdade uma mulher dizer que o marido "ajuda" em casa. Não é igualdade que serviços domésticos se atenham às nossas mães, esposas, namoradas, filhas e que trocar lâmpadas, consertar o encanamento e levar o carro na oficina é tarefa de nossos pais, filhos e maridos.

Portanto, não, o vídeo acima não é engraçado simplesmente porque violência contra a mulher nunca vai ser engraçado. Existem vários tipos de violência e essa, que a gente vivencia desde muito nova, é tão agressiva quanto qualquer outra. Eu não quero mais me sentir vítima e acuada. Eu quero confrontar cada homem que acha ter o direito de me tratar como carne no açougue. Eu quero respeito e não vou mais abaixar meus olhos. Dane-se o machismo. 





Comentários

  1. Muito bom! Já viu um video que tem um menino de três anos, mais ou menos, dizendo que vai gastar várias notas de R$ 50,00 com "rapariga". Nesse, acho que a violência é contra a mulher e contra a criança que é exposta na rede com uma atitude machista que ela nem entende, um conteúdo sexual que é um abuso. O pessoal ri! Eu acho que os pais deviam ser presos. Um abraço!

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    1. *Já viu um video que tem um menino de três anos, mais ou menos, dizendo que vai gastar várias notas de R$ 50,00 com "rapariga"?

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