Estou indo embora

Amanhecia. Ela não pregara os olhos. Foi até o quarto do filhinho e expiou pela fresta, ele dormia como um anjo. Na cozinha fez café. Tomou-o puro, sem leite, sem açúcar, em pé mesmo, apoiada em uma das pernas, debruçada sobre a bancada. Apertou os olhos para que as lembranças não viessem, mas foi inútil. O marido a tinha deixado no dia anterior. 

- Estou indo embora. - foi o que ele disse.

O casamento de uma década estava acabado. As lágrimas rolaram mais rápidas e quentes a contragosto.Tomou mais um gole da bebida quente. Desceu rasgando. Desconcertada, não sabia o que era pior: a solidão ou o orgulho ferido. 

Foi até o espelho e olhou-se atentamente. Sentia-se velha e cansada. As profundas olheiras revelavam a vigília da noite anterior e os cabelos desgrenhados caíam-lhe sobre os ombros de uma forma triste. A pele, que um dia fora sedosa e firme, parecia macilenta e marcada pelo tempo. Os olhos encheram d´água mais uma vez. Sentiu medo. 

Medo da solidão, da amargura sem fim. Medo de não merecer ser amada. Achava impossível que aos 40 e poucos anos pudesse simplesmente dar a volta por cima. A vida não tinha sido fácil até ali, mas ela nunca fora exigente. Casara-se com um  rapaz simples e viviam uma vida modesta. Por muitos anos até foram felizes. Após a chegada do filho, sabia que as coisas mudariam, mas se considerava uma pessoa resiliente. Nunca imaginou que fraco mesmo era seu marido. 

Os primeiros raios de sol tocaram-lhe os cabelos soltos e repousaram sobre seu rosto. Estava cansada de chorar. Cansada de esperar. Cansada de se sentir traída e amargurada. Deixou-se tocar pela luz, fechou os olhos, abriu os braços. Sentiu-se reenergizada. Orou e pediu forças para sobreviver àquele dia. Entre tantas batalhas já vividas ela sabia que aquela seria uma das mais difíceis até ali: vencer a depressão e encontrar, mais uma vez, o amor dentro do coração partido e abatido. 

Abriu a janela, afastou as cortinas e deixou a luz entrar. 

Comentários

  1. Uaaaaau..... Fantástico mesmo.... tocante... quantas histórias iguais a essa não acontecem diariamente? Heroínas obrigadas a encarar a vida sozinha, com filhos ou sem, depois doar a melhor parte de suas vidas a eles. Muitas deixam de viver seus sonhos em prol da família. Mas as mulheres, em geral, têm essa força mesmo! Choram, se rasgam todas, mas logo afastam as cortinas e deixam a luz entrar novamente em suas vidas !!! E renascem mais belas do que antes, mais fortes e seguras de si. Realmente lindo o texto !

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