O dia em que ela viu o Diabo

Two Fingers - Jake Bugg

Era um domingo de sol. O dia estava quente, mas ainda trazia o frescor da manhã quando ela deu de cara com ele na livraria: o Diabo em pessoa. Ele estava na seção de livros estrangeiros e pegava uma edição de Os Miseráveis quando a viu. 

Ela lembrou-se imediatamente de uma crônica de Rubem Braga - "Eu e bebu na hora neutra da madrugada", mas sabia que aquele pobre diabo ali à sua frente nunca fora tão cordial quanto o de Braga. Ainda assim não podia mais evitar o olhar dele. Piscou e, sem esboçar sorriso ou qualquer outra expressão que não fosse uma indiferença tremenda, acenou com a cabeça. 

- Como vai, Bebu? - falou com uma voz firme. Ele ficou ali, com aquele rabo entre as pernas, segurando o maldito tridente de forma tensa. Viu-o retesar as asas negras e imensas mas ainda assim ela não teve medo. Nada sentiu, a não ser uma palpitação no coração, provavelmente causada pelo desprezo que sentia pelo Coisa Ruim. 

Então, o inimaginável aconteceu. O Diabo fez uma careta e, sem dizer palavra, saiu correndo como ele mesmo correria de uma cruz. Ela, por sua vez, ficou ali, sem entender nada. Até onde a memória lhe permitia, lembrava-se que era ele, o próprio Capiroto, quem tinha lhe feito mal e não ao contrário. 

Naquela época, quando o conheceu, ainda era ingênua e inexperiente e ele, Belzebu, ou Bebu para os íntimos, sabia disso. Ela não passava de uma garota simples, sem muitas expectativas ambiciosas quando ele apareceu com suas promessas. Encantou-a com seus gestos sedutores, palavras difíceis e prometeu o céu. Sem saber que em vez de arcanjo Bebu era o Cão, ela sucumbiu. 

Mas os anos haviam curado tamanha decepção e, longe de ser aquela menina simples, ela havia crescido. A beleza tomara conta dela em todos os aspectos. Era, de fato, outra. Piscou novamente apenas para ver o Diabo indo embora, a passos largos, sem olhar pra trás.

Ela deu de ombros e tornou a colocar os fones no ouvido. Aumentou o volume da música que escutava antes do fatídico encontro. Abriu o livro que tinha em mãos - Crônica de uma morte anunciada - e tornou a concentrar-se na leitura. 

Nunca imaginou que chegaria o dia em que Bebu, o Diabo em pessoa, teria medo dela e não pôde evitar o sorriso que lhe escapou pelo canto da boca. 


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