Da série "Você sabe que amadureceu quando..."

The show - Lenka

...você se basta.



Raramente ia para a cozinha. Não que não gostasse, mas nunca fora fã incondicional da prática de fazer "comidinhas". Às vezes se arriscava a fazer um ou outro prato, mas era raro. Até que um dia, chegou em casa seca para cozinhar algo. Não sabia de onde vinha aquela súbita vontade. Talvez estivesse apenas cansada dos self-services diários os quais tinha que frequentar no horário do almoço. 

Depois de colocar o avental, que era praticamente novo, pois quase não utilizava, abriu uma garrafa de vinho. Começou os processos dos sabores e aromas ali. Girou o líquido na taça e aspirou profundamente a essência meio abaunilhada que saía da bebida. Chocolate, carvalho e um leve toque de avelã preencheram suas narinas. Deu um gole e fechou os olhos. Era disso que ela precisava. 

Enquanto chorava de consternação ao picar a cebola, lembrou de como, ainda criança, gostava de brincar de cozinhar. "A economia da dona de casa", era o nome do programa que inventara, enquanto acompanhava a empregada a fazer o almoço. Lembranças felizes aquelas.

Começou pelo molho e, ao refogar a cebola na manteiga, sentiu aquele cheirinho delicioso que ambos os ingredientes têm quando cozidos, de dar água na boca. A manteiga ia derretendo e dourando os pedacinhos de cebola. Picou algumas fatias de peito de peru e mesmo que não tivesse muita paciência com a simetria, cortou em pedaços bem pequenos. Juntou ao refogado de cebola.

Enquanto mexia o penne, a água fervente fazia aquele ruído quente, abafado enquanto borbulhava. O creme de leite era seu ingrediente favorito. Abriu a lata com carinho e juntou o líquido com a cebola refogada e o peito de peru. Que delícia era ver o creme de leite misturar-se com outros ingredientes. Mexeu delicadamente a colher de pau. Ela a tinha ganhado de casamento,  mas nenhum sentimento ruim veio dessa lembrança. Ela sorriu com o canto da boca. A consistência estava perfeita.

Lembrou da noz moscada. Era um tempero com um cheiro engraçado, forte, ocre. Ralou um pouco e jogou na mistura de creme de leite. Faltavam as ervilhas. Desejou que houvesse ervilha fresca no mercado, mas rapidamente se recordou que quase não ia ao mercado. Era o que tinha na dispensa. Juntou tudo e abaixou o fogo. Provou a mistura e fez "hummm". Sua mãe nunca deixara ela provar a comida na mesma colher que mexia a panela. Dizia que "azedava". Mas ali, no apartamento dela, era seu domínio. Sua casa. 

O penne estava cozido. Al dente, como ela gostava. Jogou um fio de azeite e aspirou o aroma delicado de olivas na massa. Jogou o molho, ainda quente, em cima. O prato fumegava e exalava a melhor fragrância do mundo. Sentou-se na varada, acendeu algumas velas. Agarrou sua taça de tinto. Olhou para o céu, limpo, a lua aparecendo e pensou que aquele havia sido um bom dia. Sorriu para si mesma e deu a primeira garfada. 


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